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No caminho de Kumano – o monge e a mensagem (parte final)

No caminho de Kumano – o monge e a mensagem (parte final)

Imagem ilustrativa da imagem No caminho de Kumano – o monge e a mensagem (parte final)

(Termino hoje a narrativa de minha experiência num caminho de peregrinação japonês, e meu primeiro contacto com o Shugêndo, prática ancestral de desenvolvimento espiritual).

Estamos no local privado de um templo budista. Escutamos o monge cantar, rezar em voz alta, tocar um instrumento de percussão. Acendemos incenso e eu me lembro dos dias que passei em Kumano – a visita aos três santuários xintoístas, o momento em que Katsura mudou com sua energia a temperatura, a viagem de barco no rio, a briga provocada no lugar onde os homens devem brigar, o entusiasmo das pessoas, o mosteiro na montanha nevada, as noites com peixe cru e sakê quente. Naquela mesma tarde estarei indo para uma cidade grande, um hotel confortável, um avião, e uma cidade maior ainda: Tokyo.

Lembro-me das outras vezes que pratiquei Shugêndo durante estes dias: andar sem agasalho numa temperatura abaixo de zero, ficar acordado durante uma noite inteira, manter a testa encostada na casca áspera de uma árvore até que a dor se deixasse anestesiar por si mesma.

Durante toda a viagem, as pessoas diziam que o monge que tenho à minha frente recitando as preces é o maior especialista de Shugêndo da região. Procuro me concentrar, mas aguardo ansioso o final da cerimônia. Dali saímos para outro edifício, de onde posso ver uma gigantesca cachoeira descendo montanha abaixo – 134 metros de altura, a maior do Japão.

Para minha surpresa (e de todos que estão comigo), o monge traz três livros que escrevi, e pede que os autografe. Eu aproveito para pedir autorização para gravar nossa conversa. O monge, que não para de sorrir, diz que sim.

- Temos 48 cachoeiras na região – comenta. – Para chegar até elas é preciso ter muita resistência física à dor e ao cansaço. Uma das práticas do Shugêndo consiste em ficar debaixo da água gelada que cai, até que ela limpe o corpo e a alma.

- Foi a dificuldade do caminho de Kumano que criou o Shugêndo?

- Foi a necessidade de entender a natureza que obrigou o homem a dominar a dor e ir além dos seus limites. Há 1.300 anos, um monge que tinha dificuldade de se concentrar, descobriu que o cansaço e superação dos obstáculos físicos podiam ajuda-lo na meditação. O monge ficou fazendo este caminho até morrer; subindo e descendo montanhas, ficando sem agasalho na neve, entrando todos os dias numa cachoeira gelada para meditar. Como se transformou num ser iluminado, as pessoas resolveram seguir o seu exemplo.

- O Shugêndo é uma prática budista?

- Não. É uma série de exercícios de resistência física, que ajudam a alma a caminhar junto com o corpo.

- Se pudesse resumir numa frase o que significa o Shugêndo e o caminho de Kumano, qual seria esta frase?

- Quem faz exercício físico, ganha experiência espiritual, se tiver sua mente fixa em Deus enquanto está exigindo o máximo de seu corpo.

- Até que ponto a dor física é importante?

- Ela tem um limite. Passando o limite da dor, o espírito se fortalece. Os desejos da vida cotidiana perdem o sentido, e o homem se purifica. O sofrimento vem do desejo, e não da dor. 

O monge sorri, pergunta se quero ver a cascata de perto – e com isso entendo que nossa conversa está terminada. Antes de sair, ele se vira para mim:

- Não esqueça: procure ganhar todas as suas batalhas, inclusive aquelas que você trava com você mesmo. Não tenha medo de cicatrizes. Não tenha medo de vencer.

No dia seguinte, quando estou prestes a embarcar, Katsura – a jovem de 29 anos que esteve presente desde o primeiro dia em Kumano - aparece no aeroporto e me entrega um pequeno manuscrito em japonês, com alguns dados históricos sobre Kumano.

Eu abaixo a cabeça e peço que me abençoe. Ela não hesita um segundo sequer: diz algumas palavras em japonês, e quando levanto os olhos, vejo em seu rosto o sorriso de uma jovem que escolheu ser guia de um caminho que ninguém conhece, que aprendeu a dominar uma dor que nem todos vão sentir, que entende que o caminho é feito quando se anda, e não quando se pensa sobre ele.

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