Debates
Militarismo e servilismo
Da Redação | 07 de dezembro de 2018 - 01:25
Por Mário Sérgio de Melo
Conheci certa vez dois fidalgos oficiais de exército, um
francês, mais envelhecido e maduro, outro português, de meia idade.
Encontravamo-nos num evento científico, eles já não eram mais militares.
Tivemos oportunidade de nos conhecer bem, fizemos juntos uma viagem de estudos
de vários dias pelo Maciço Central francês. Os dois eram ótimas pessoas,
tenho-os em alta conta, embora desde então, já lá se vão mais de três décadas,
nunca mais os tenha encontrado. Mas não esqueço até hoje o que aprendi com
eles.
Naquela viagem, conversa vai conversa vem, constatei que o
francês era um fervoroso defensor do militarismo. Ele alegava que só o regime
militar consegue garantir a disciplina, e com ela a ordem e o progresso. Segundo
ele só a hierarquia militar consegue fazer com que cada um cumpra suas
obrigações com eficiência e probidade.
Contestei, argumentei que disciplina, honestidade, comprometimento e
ordem podem ser alcançadas num ambiente de liberdade, responsabilidade,
respeito e justiça sem a necessidade da obediência cega que é a lei dentro da
caserna, onde as ordens superiores têm de ser cumpridas sem questionamento. O
francês não concordou comigo, mas notei que o português, embora calado, pareceu
estar do meu lado.
Mais tarde naquele mesmo dia, quando estávamos só eu e o
oficial português, ele me contou sua marcante história. Ele tinha se tornado um
jovem oficial, vindo de família tradicional, na época em que todos os jovens
portugueses eram obrigatoriamente enviados pelo menos por um período para as
guerras de independência das colônias portuguesas na África. Ele fora destacado
para Moçambique, e de lá trazia uma experiência trágica. Obrigado a seguir
ordens superiores, ele conduzira um grupo de oitenta comandados a uma emboscada
de morte, já quase ao final da guerra. Embora ele suspeitasse da emboscada,
seus argumentos não tinham convencido os superiores, que, por certo, eles mesmos
não participaram da operação. O semblante e a voz do oficial português ao
contar-me essa história são inesquecíveis. Ele se considerava o culpado por
todas aquelas mortes.
Lembro também da canção de 1968 que se tornou hino dos
jovens inconformados que resistiam à ditadura militar no Brasil, a belíssima
“Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, que tem uma
estrofe que diz: “Há soldados armados, amados ou não/Quase todos perdidos de
armas na mão/Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:/De morrer pela pátria
e viver sem razão”. O oficial português e seus comandados encarnaram bem o que
dissera anos antes a canção brasileira.
Quantas guerras, quantas ditaduras, quantas tiranias ainda
teremos que viver até aprender que é possível a justiça, a honestidade, o
respeito sem a necessidade da obediência cega às ordens que muitas vezes
equivocam-se, pois a hierarquia é feita de pessoas, e as pessoas ora equivocam-se
ora são servis a interesses inconfessáveis? Quantas agruras ainda teremos que
viver até aceitar que é possível construir uma sociedade de cidadãos
conscientes, probos e engajados, em que instituições democráticas e sólidas garantam
que o nosso lado selvagem mantenha-se controlado pelo nosso lado civilizado sem
a aberração da obediência cega e do servilismo? Quantos fracassos ainda teremos
que amargar até compreender que é preferível o incômodo da participação e do antagonismo
sadio de diferentes pontos de vista do que a omissão, a submissão e o
servilismo do conformismo e do totalitarismo?
Há filósofos e sociólogos atuais que afirmam que nossa civilização
está muito complexa, e as pessoas preferem delegar a responsabilidade por tudo
que acontece a “autoridades” do que assumirem elas mesmas a responsabilidade
por suas vidas e a vida da coletividade. Estaríamos nós renunciando à
liberdade? Desacreditamos da possibilidade de uma sociedade livre, democrática
e virtuosa? Estaríamos preferindo a obediência cega da hierarquia militar às
atribulações e desafios da construção de uma verdadeira e duradoura democracia?
Napoleão, Hitler, Mussolini, Pinochet, entre tantos outros
exemplos, parecem nos indicar que regimes militares são desastrosos para os
países e os povos que os adotam. A sociedade é mais que seus militares. E eles,
como regra, aprendem que é preciso morrer pela pátria e viver sem razão.
Mário Sérgio de Melo é Geólogo, Professor do Departamento de Geociências da UEPG