Debates
Política e Direito: qual o papel da Constituição Federal?
Da Redação | 18 de outubro de 2018 - 02:32
Por Renê Hellman
Apesar de não ter findado a sua primeira quinzena, o mês de
outubro de 2018 mostra-se um marco histórico importante para o Brasil. Vivemos
a turbulência de um processo eleitoral que impôs severas mudanças na fisionomia
política do país. Velhas oligarquias foram varridas do jogo pela força do voto
indignado “com tudo o que aí está”. Novas oligarquias estão em formação. Há
quem veja um futuro soturno e de repressão. Há quem vislumbre um horizonte com
boas perspectivas. Cada qual, a seu modo e com suas convicções, vê o mundo e
busca fazer suas previsões. Por ora, apenas previsões, ainda muito opacas com a
histeria que tomou conta do país.
Mas não se tratará aqui de futuro. O tema é o passado e o
presente. Em outubro de 2018, mais precisamente no dia 5, a Constituição
Federal completou 30 anos da sua promulgação. É um marco importante na história
institucional brasileira. Atinge a maturidade aquela que foi considerada a
Constituição Cidadã, feita em um tormentoso processo constituinte, que envolveu
discussões das mais variadas ordens e teve que acomodar interesses de todas as
espécies.
Após os protestos que invadiram as ruas em 2013, ouviu-se da
então presidente da República, Dilma Rousseff, a proposta de uma constituinte
exclusiva. Acreditava a então presidente, ainda sem compreender a real dimensão
do que ocorria embaixo do seu nariz, que as ruas seriam pacificadas com uma
esdrúxula promessa de ruptura constitucional. Errou e o que veio depois
demonstrou claramente a sua total incapacidade de compreender o que desejavam
as ruas.
Em 2018, novamente o tema voltou à discussão no âmbito
político. O candidato Fernando Haddad, do PT, fez constar em seu plano de
governo uma proposta de constituinte exclusiva, para promover as reformas que
entende ser necessárias para que o país avance. Falando à imprensa, Hamilton
Mourão, candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, do PSL,
mencionou a possibilidade de convocação de uma comissão de notáveis para a
elaboração de uma nova Constituição.
Após o fim do primeiro turno, ambos os candidatos,
felizmente, comprometeram-se com a manutenção da ordem constitucional. Haddad
afirmou que retirará de seu programa de governo a proposta da constituinte
exclusiva. Bolsonaro corrigiu seu vice em rede nacional e rejeitou a ideia de
uma nova Constituição.
Avançamos do primeiro turno para cá. E esta tendência é
natural. Com a concentração dos holofotes sobre apenas dois candidatos, é
natural que as propostas extremistas sejam revistas, para encantar os eleitores
que se posicionam no centro das ideias políticas. Agora é o momento de cativar
os não-convertidos e mostrar a eles que as propostas são palatáveis e que um
mínimo de ordem institucional haverá de ser mantida.
É importante que o Brasil reflita sobre sua ordem
institucional. O desencanto “com tudo o que aí está” e o pavor diante do
suposto “fascismo” não podem suplantar a preocupação com o respeito às
instituições democráticas estabelecidas pela Constituição Federal. Ainda somos
uma democracia aprendiz. Ainda somos aprendizes em democracia, mas não podemos
deixar que a necessária luta contra a corrupção e a necessária luta contra as
ideias totalitárias (de direita e de esquerda) nos tirem o foco sobre aquilo
que consiste na base fundamental do país.
No seu aniversário de 30 anos, a Constituição Cidadã implora
por sua defesa. É comum que se diga, no âmbito jurídico, da força normativa da
Constituição. Repete-se em todas as aulas de Direito que o ordenamento jurídico
há de sempre pautar-se pelas normas constitucionais, mas, em muitas situações,
isso não passa de mero recurso retórico. Como bem destaca o professor Georges
Abboud (PUC-SP), tratamos a Constituição Federal como a Geni, aquela personagem
da música de Chico Buarque. Quando dela precisamos, imploramos por sua
normatividade, mas quando dela discordamos, seja por questões ideológicas,
econômicas, religiosas, morais, rejeitamos a sua força normativa.
Já passamos do tempo de tornar a imperatividade da
Constituição uma realidade. Suas normas devem ser observadas e seu cumprimento
deve ser exigido, mesmo naqueles casos em que suas disposições não nos agradam.
Direito não é fator de agrado. Ao contrário, sempre irá desagradar, um ou
outro, mas é um desagrado necessário para a manutenção da convivência social em
limites minimamente aceitáveis.
Todo início de ano, costumo iniciar minhas aulas
questionando meus alunos sobre o que é o Direito e para que ele serve.
Em regra, as respostas primeiras que ouço são as clássicas
“Direito é um sistema de normas”, “Direito serve para regular as condutas das
pessoas, impondo obrigações e proibições”. Quase sempre, a primeira face que se
nos apresenta do Direito é esta: ordenamento que limita nossas condutas. E isso
está correto.
Entretanto, esta não é a resposta completa. Além das
proibições e permissões que o Direito estabelece para as pessoas, há outra
função fundamental que é comum ser esquecida: o Direito limita o poder do
Estado.
E este é o papel central da Constituição. Ela é a grande
garantia de que os cidadãos terão direitos básicos, chamados por ela de
fundamentais, e que estes direitos servem justamente como barreiras para o
exercício do poder estatal.
O poder estatal, se desempenhado sem limites, configura-se
na mais violenta expressão da arbitrariedade. A História é farta de exemplos
dos desastres causados pelo poder desmedido e uma ordem constitucional
democrática sólida nos resguarda justamente de movimentos de natureza
totalitária. E há totalitarismos tanto na esquerda, quanto na direita. Não há
mocinhos quando se trata de exercício sem limites do poder estatal.
Diante deste cenário, o papel da Constituição e do Direito
como um todo é o de nos resguardar do arbítrio estatal. Daí a importância de
todos, independentemente de onde estivermos no espectro político, defendermos a
imperatividade da Constituição. Se é garantia para um, é para todos. Se não é
para um, será para ninguém.
Que tenhamos a consciência de que qualquer agente do Estado,
seja do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, deve obediência às normas
constitucionais, pois é ali que reside a legitimidade para que o Estado sirva
àqueles que o constituíram, os cidadãos brasileiros. Fora disso, de qualquer
lado, nos sobra a barbárie e não parece ser esse o desejo do país.
Renê Hellman é Professor do Departamento de Direito Processual da UEPG e Professor do Curso de Direito do CESCAGE