Debates
Reforma trabalhista e organização sindical: reformismo oculto
Da Redação | 09 de fevereiro de 2018 - 02:42
Por Clemente Ganz Lúcio
A nova legislação trabalhista, ao enfraquecer o poder de
negociação dos sindicatos e reduzir o financiamento deles, impõe uma reforma
sindical, cuja constitucionalidade vem sendo questionada por argumentos
jurídicos consistentes.
Duas das principais fontes de financiamento sindical, que
representam cerca de 70% da receita corrente das entidades, estão sendo
atacadas. Uma é a contribuição sindical (desconto anual de um dia de trabalho
de todos os empregados), destinada à manutenção de sindicatos, federações,
confederações e centrais sindicais; e ao Ministério do Trabalho. Tinha caráter
obrigatório desde que foi implantada, mas, com a atual legislação, passou a ser
facultativa.
A outra receita importante é a contribuição assistencial,
feita pelos trabalhadores às entidades sindicais que os representam, por
ocasião das negociações coletivas de trabalho. O Supremo Tribunal Federal tem
atuado incisivamente para proibir o desconto dessa contribuição dos
trabalhadores não associados aos sindicatos.
Tudo indica que a finalidade é quebrar o movimento sindical.
Se não fosse esse o propósito, a legislação asseguraria mecanismos para um
processo de transição.
Promotores e apoiadores da reforma sindical afirmam que o
movimento sindical deverá se financiar com a prestação de serviços
assistenciais, médicos, jurídicos e de lazer, entre outros, o que só confirma a
intenção de atacar a organização sindical.
Os sindicatos são uma criação histórica dos trabalhadores em
resposta à exploração do trabalho realizada pela organização da produção
capitalista. O sindicato representa o elo entre os trabalhadores que o
constituem, um sujeito coletivo. A intencionalidade dessa “reunião” é criar uma
identidade alternativa e independente daquela expressa pela soma de
trabalhadores subordinados à empresa. Trata-se de uma união mobilizada pela
solidariedade, oriunda da identidade de classe, que cria um poder capaz de
gestar esse sujeito coletivo.
Para que serve o sindicato? Para reunir e mobilizar os
trabalhadores para lutar pela parte que lhes cabe na produção, o que se
expressa em melhores salários e benefícios; em condições de trabalho adequadas;
em saúde e segurança; em bem-estar e qualidade de vida.
Os sindicatos foram criados para elaborar, promover e
defender regras para as relações de produção, o que envolve formas de
contratação, jornada e condições de trabalho, saúde, segurança etc. Também têm
papel fundamental na distribuição econômica e social dos resultados alcançados,
além de conduzir inúmeras lutas econômicas, políticas, sociais e culturais que
integram a história da classe trabalhadora. Eles geram e entregam o que
chamamos de direitos trabalhistas e sociais. Para isso se organizam, mobilizam
os trabalhadores e a sociedade, investem em formação, produzem e difundem
informação, conhecimento e opinião. São financiados pelos trabalhadores e, em
diversas partes do mundo, têm apoio do poder público.
A produção social dos direitos se dá na relação entre o
sindicato, como sujeito coletivo de representação dos trabalhadores, e o
empregador (privado ou público) ou a representação coletiva empresarial. Essas
representações negociam e celebram convenções ou acordos coletivos nos quais
são definidos direitos e deveres para as partes, que, para o trabalhador,
incorporam-se ao contrato individual de trabalho.
Há procedimentos pelos quais os trabalhadores deliberam e
delegam poder de representação - ao estabelecer o estatuto do sindicato, eleger
a diretoria, aprovar uma pauta, definir uma greve ou aprovar uma proposta de
acordo. Os trabalhadores são individualmente convocados e, em assembleia,
delegam poderes de representação ao sindicato.
A definição de quem se beneficia dos direitos produzidos e
conquistados pelos sindicatos équestão fundamental, que orienta todo o sistema
de relações de trabalho, influencia diretamente a estrutura e a organização
sindical e determina a base de financiamento. Os sistemas de relações de
trabalho, mundo afora, estabelecem dois critérios básicos: a) só os associados
ao sindicato são beneficiários ou b) todos os trabalhadores da base
do sindicato são beneficiários, independentemente da associação.
Na primeira hipótese, a tendência é haver alto índice de
sindicalização, uma vez que os trabalhadores querem acessar os direitos
conquistados pelo sindicato. Com isso, os sindicatos são mais fortes e têm mais
facilidade de constituir organizações nos locais de trabalho. Os sócios
financiam a estrutura, a organização, a mobilização e as negociações que
conquistam os direitos. Quem não é sócio não tem acesso ao direito.
Na segunda hipótese, criam-se mecanismos para definir as
atribuições e responsabilidades de sindicalizados e não sindicalizados nas
tomadas de decisão sobre questões que tratam dos interesses do conjunto da
categoria, como a celebração de acordos cujos direitos valem para todos. Cabe
aos sindicatos construir a estrutura, organização e mobilização para a
implementação das ações que lhes são confiadas. Nesse caso, os trabalhadores
não filiados também financiam, de maneira obrigatória, o sindicato que os
representa.
Os sistemas admitem que o trabalhador tem o direito de se
recusar a delegar poder de negociação e a financiar o sindicato. Essa
manifestação poderá ser expressa de duas maneiras: a) em assembleia, com a
participação nos debates e na deliberação coletiva, o que torna obrigatório o
cumprimento das decisões da maioria – pelo sindicato e pelos trabalhadores; b)
ou individualmente, forma pela qual o trabalhador recusa, simultaneamente, o
acesso ao direto conquistado pelo sindicato e a obrigação de financiar a entidade.
O que não existe é essa situação prevista na nova lei no
Brasil, em que o acesso ao direito é amplo e total e a contribuição do
trabalhador, optativa. A escolha feita pela Reforma Trabalhista deve ser
alterada se queremos fortalecer o sistema de relações de trabalho no Brasil e o
papel dos sindicatos.
Essa questão foi tratada no Fórum Nacional do Trabalho, em
2004, pelas representações de empregadores, de trabalhadores e de governo. Um
debate profundo analisou o sistema de relações de trabalho, as negociações, a
solução ágil de conflitos, a representatividade das entidades sindicais, entre
outros temas. Os empregadores e trabalhadores afirmaram ali que almejavam um
sistema no qual convenção e acordo coletivo contemplassem todos os
trabalhadores – sócios e não sócios do sindicato. O sistema de relações de
trabalho foi, então, redesenhado, com regras para gerar convenções coletivas -
com validade e abrangência para todos os trabalhadores de uma categoria e todas
as empresas de um setor econômico – ou acordos coletivos, para todos os
trabalhadores de uma ou mais empresas (acordos).
Nesse modelo, cabe a todos os trabalhadores deliberar em
assembleia, convocados pelo respectivo sindicato: (a) se querem abrir uma
negociação e em que condições; (b) quais as propostas ou a pauta para a
negociação; (c) qual o plano para conduzir as negociações; (d) como financiarão
a ação sindical. As decisões serão de responsabilidade de todos e todos serão
beneficiários dos resultados.
O instrumento para financiamento indicado no Fórum foi a
cobrança de uma taxa ou contribuição negocial devida por todos, quando
autorizada a negociação, cujo valor seria definido pela assembleia que
autorizasse a negociação, com regras estipuladas nos estatutos da entidade e
com limite máximo do valor a ser pago.
Ainda se apontou a necessidade de que as entidades sindicais
mantivessem um sistema de prestação de contas à categoria (dos resultados das
negociações e da aplicação dos recursos arrecadados), como prática de boa
governança e relação com os trabalhadores. A Reforma deixou tudo para trás.
Daqui para a frente, a essência da disputa será estruturar e
desenvolver um modelo coerente de sistema de relações de trabalho, constituído
por entidades fortes e representativas, para revigorar as negociações coletivas.
Requererá não só aportar regras de convenções e acordos coletivos, mas também
mudar a atual legislação. Para virar o jogo, será preciso muita força, a fim de
mobilizar os trabalhadores para que eles se coloquem como sujeitos coletivo
nessa disputa!
Clemente Ganz Lúcio é Sociólogo, diretor técnico do DIEESE,
membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e do Grupo
Reindustrialização