Paulo Coelho
Duas histórias da tradição Zen
Um mestre zen descansava com seu discípulo. A certa altura, tirou um melão do seu alforje, dividiu-o em dois, e ambos começaram a comê-lo
Da Redação | 20 de maio de 2017 - 02:55
O
gosto e a língua
Um mestre zen descansava com seu discípulo. A certa altura, tirou um melão do seu alforje, dividiu-o em dois, e ambos começaram a comê-lo.
No meio da refeição, o discípulo comentou:
- Meu sábio mestre, sei que tudo que o senhor faz tem um sentido. Dividir este melão comigo talvez seja um sinal de que tem algo a me ensinar.
O mestre continuou a comer em silêncio.
- Pelo seu silêncio, entendo a pergunta oculta – insistiu o discípulo.
– E deve ser a seguinte: o gosto que estou experimentando ao comer esta deliciosa fruta está em que lugar: no melão ou na minha língua?
O mestre não disse nada. O discípulo, entusiasmado, prosseguiu:
- E como tudo na vida tem um sentido, eu penso que estou perto da resposta a esta pergunta: o gosto é um ato de amor e interdependência entre os dois, porque sem o melão não haveria um objeto de prazer, e sem a língua...
- Basta! – disse o mestre. – Os mais tolos são aqueles que se julgam os mais inteligentes, e buscam uma interpretação para tudo! O melão é gostoso, isto é suficiente, e deixe-me comê-lo em paz!
Ryokan e o ladrão
Ryokan era incapaz de fazer acusações. Embora fosse um grande mestre do zen budismo, jamais se julgou melhor que os outros.
Um de seus discípulos pediu que conversasse com o irmão salteador, que aterrorizava a cidade. Ryokan foi até a casa do bandido, e passou a noite inteira com ele.
Não trocaram uma só palavra.
De manhã, o salteador ajudou Ryokan a atar suas sandálias. Ao fazer isto, as lágrimas do homem começaram a lavar seus pés.
- Nunca tive a companhia de um sábio - disse, entre soluços. – Só de outros salteadores como eu, ou de policiais interessados em me condenar. Se Ryokan passou uma noite comigo, é porque ainda valho alguma coisa.
E a partir deste dia, este homem nunca mais cometeu um crime.
El Grego e a luz
Numa agradável tarde de primavera, um amigo foi visitar o pintor El Greco. Para sua surpresa, encontrou-o em seu atelier, com todas as cortinas fechadas.
Greco trabalhava num quadro que tinha como tema central a Virgem Maria, usando apenas uma vela para iluminar o ambiente. Surpreso, o amigo comentou:
- Sempre ouvi dizer que os pintores gostam do sol para escolher direito as cores que vão usar. Por que você não abre as cortinas?
- Agora não – respondeu El Greco. – Perturbaria o fogo brilhante da inspiração que está incendiando minha alma, e enchendo de luz tudo a minha volta.